...mas o morro continuou sendo o mesmo A Lígia me encomendou uma coluna para a página dela no Guia. Lógicamente o texto não pode ser tão rock´n roll, então ficou assim: Terça feira, 6 de setembro véspera de feriado. O dia amanheceu chuvoso no Rio de Janeiro. O negócio é começar pelo café e fazer a pergunta que não cala: "Pra onde vamos?". A maioria já decidiu seus roteiros. "Estamos pensando em ir para a Rocinha". Boa. Fechado. Vamos! Quarenta e cinco minutos de ônibus do bairro de Botafogo até São Conrado. Passeio nem curto nem longo, diria agradável em meio à arquitetura e jardins cariocas. Nada de pacote para gringo visitar o morro, olhar gente do lado de dentro de um carro como em um passeio pelo Simba Safári. Tô fora. Sou mais samba e suor in loco. Descemos do ônibus próximo à praia do bairro onde os prédios ainda resistem no velho modelo de moradia classe média: três quartos, dois banheiros e um carnê do IPTU eterno (vide reverendo Mirisola). Adentramos algumas quadras e estamos no pé do morro. Uma multidão de gente andando para todo lado como em uma enorme feira a céu aberto. As ruas perdem a lógica e vielas sinuosas desenham a urbanidade do bairro. Perueiros aguardam em fila como taxistas. Moto-taxistas escalam as ladeiras de paralelepípedo úmidas carregando galões d´água e botijões de gás em suas garupas. Vamos mais fundo, assustados como frangos em meio a uma matilha de raposas. Olhares desconfiados capturam nossos olhos. Marcela, Aaaaaah Marcela. Cabelo louro, liso e desfiado, obras do Miro tatuadas e roupas de grifes modernas. Musa das raves de Psy. Turista até dentro do próprio quarto. Estávamos fodidos. Como já dizia Mrs. Jarvis Cocker: "cause everybody hates a tourist". Melhor garantir a sobrevivência logo. Receita para turista nunca virar um herói: esvazie amistosamente os bolsos! Escolhemos o restaurante da esquerda: R$17,90 o quilo. A comida, basicamente a mesma de um restaurante duas estrelas e meia do asfalto. O básico com talheres limpos. Do outro lado da rua, jovens com cabelo oxigenado passam as coordenadas pelo rádio. Um sobe e desce frenético. Terminada nossa refeição voltamos à rua. O morador nos alerta que subir o morro pode ser arriscado, talvez mais por receio do que por risco verdadeiro. Se Marcela era a típica menina de apartamento, sem conhecimento dos perigos do mundo, Juliana havia se criado a pão com mortadela e maços de Marlboro vermelho. Apesar da aparente diferença andavam juntas. Dizem que Juliana se formou em Comércio Exterior e voou para a China. Parece que lá que existe um pote de ouro a ser descoberto. Desejamos pelo menos uma foto, um souvenir do momento. "Não rola não cumpadi. Os caras lá em cima estão de olho e não tem nada autorizado" dispara o jovem em um típico carioquês. Mais um passeio pelas vielas e nos despedimos da favela, extasiados e frustrados na mesma medida. Uma volta curta e estamos na via onde os perueiros marcam o ponto. Fechamos com um deles para levar-nos ao Cristo. "Vocês não querem dar uma volta pelo morro?", sugeriu o motorista. "Lógico cumpadi" - agora é a gente que virou carioca. A resposta positiva nos levou para o clímax daquele tour. A Kombi vira a direita e retorna. A subida fica mais íngreme. Na Rocinha também tem Mcdonalds. Desculpe, mas esqueci de anotar o endereço. Cinco minutos e algumas curvas depois estamos no alto do morro. De um mirante nós vemos a orla, os prédios na frente da praia (suas coberturas estão abaixo da linha de nossos olhos) e toda arquitetura orgânica da favela. Lá do alto, nos sentimos os próprios donos do morro. Era justo. Todo mundo passeando por Ipanema, Copacabana, Santa Tereza e nós no cume do perigo. Voltamos para a Kombi e retomamos o caminho para o mundo onde os mais favorecidos moram embaixo. Na curva que dá inicio a ladeira da decida, o Caveirão cruza conosco. Senti a frieza e a intransponência daquele veículo se alojar em minha espinha. Sabia que algo estava errado. Pitbulls nunca saem a passeio na hora do almoço. Os primeiros rojões estouraram no céu. Policiais cruzavam conosco a pé e em viaturas. Moradores eram colocados contra o muro para serem revistados. Um carnaval de rojões e tiros fazia a trilha sonora do passeio. Nosso motorista, tenso no volante, tentava de forma prudente nos tirar do tumulto, enquanto a Kombi deslizava de forma sinuosa a estrada da Gávea abaixo. Um único tiro seria suficiente para atravessar aquele carro como um abridor dilacera uma lata de sardinhas. Eu abraçava Aline, abaixava a cabeça e escutava o barulho dos tiros. Aline - a terceira delas, então noiva em sua despedida de solteiro, prestes a tomar um tiro ali comigo. Goudart não faria retrato melhor do amor bandido. Continuamos descendo pelo caminho e quando as viaturas desapareceram, uma frota de Pajeros surgiu do outro lado da via. Pensei que fosse algum comboio de diplomatas, mas era a fila para apanhar as crianças da Escola Americana após a aula. Será que a Sasha escutou o barulho dos tiros? Aposto o café da manhã do Show da Xuxa no inicio dos 90 - aquele com presunto, queijo, pão integral, torradas, suco de laranja, uvas, morangos, melão, melancia e marmelada - que sim. Sem falar naquele monte de moleques na platéia com o nariz cheio de remela. Deixamos a Gávea e nos despedimos de nosso cicerone na Rocinha em Copacabana. "Vocês viram quantos rojões eles soltaram?" disparou Carolina. "Rojões?" E os caras do banco de trás da Kombi fazendo as contas de quantos calibres diferentes eles contaram. "Sério? Também pensei que fossem somente rojões" concordou Juliana com a Marcela. Já disse que elas se entendiam bem. Aline ainda tinha um aspecto pálido. Dois meses depois a policia cortou as azas do Bem-Te-Vi, mas o morro continuou sendo o mesmo. :: Vinicius Aguiari, - 5:45 PM [+] :: ●
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